Cá estou eu novamente na Índia. Quando o solo indiano penetra
seu ser, torna-se algo como uma fragrância de perfume, misteriosamente
irresistível, que se quer perseguir.
Cheguei em Delhi e imediatamente embarquei num trem em direção a Gwalior.
No mesmo dia da minha chegada, consegui ir até o forte – um
dos importantes monumentos turísticos da região, estratégico para a ascensão e
queda de inúmeros impérios desde que foi construído, no Século VIII. Conforme
me aventurava entre os quartos do forte, um guia turístico gentilmente me
ofereceu seus serviços e, logo depois, um jovem casal indiano nos fez companhia.
Juntos revivemos a história do forte, nos comunicando um pouco em inglês e um
pouco em híndi. Entre perguntas e
respostas, vejo o lugar se transformar
em um majestoso e vibrante salão de baile e concerto, depois num espaço para
digníssimos e marajás, seguido pelos quartos das oito mulheres do rei e por fim
o quarto de tortura de Moghul. Na
minha imaginação posso ver as cores da atmosfera festiva, através das marcas
dos espelhos que ainda estão nas paredes, e imagino o ambiente refletido na iluminação
das lamparinas à óleo, coloridas nuances de uma noite de espetáculos.
De novo e mais uma vez, me dou conta do quão profundamente
passado e presente se fundem – um sentimento que me é familiar quando estou em
casa em Paris. A noite no hotel, me chama atenção um sofisticado casal inglês que
exala o perfume de uma vida repleta de importantes experiências propositalmente
cultivadas. Como na Índia, em Israel ou outras partes do mundo, você encontra
pessoas com suas histórias individuais, cada um no seu microcosmo, fazendo
parte de algo muito maior. É uma atmosfera que não tem nada a ver com idade.
Me sinto à vontade com meu guia e sinto que ele acha curioso
meu entusiasmo por pedras antigas. Ele se oferece para me acompanhar pelo resto
do dia. Os templos margeiam a estrada de terra, onde também jogam críquete, os meninos da prestigiosa escola Gwalior. As dependências dos professores da escola
estão na rota para o Templo Sikh, onde poderemos comer. Aqui, refeições são servidas durante todo o
dia. Meu guia conhece todo mundo, o que me dá o privilégio de ser convidada
para conhecer a cozinha. As refeições são preparadas em caldeirões gigantes – é
maravilhoso! O chefe de cozinha é um Sikh com semblante generoso; suas
sobrancelhas brilham com as pérolas de suor que gotejam sob seu turbante.
Apesar de ser solteiro ele é casado com sua cozinha, dedicado a cuidar dela. Já
seu irmão mais novo, de 23 anos, espera se casar nos próximos 2 anos. Ele me
mostra fotos de sua prometida – um casamento arranjado pela família.
Já são 4 da tarde então me preparo para voltar para casa. Um
jovem indiano, vestido com uma camisa xadrez e um chapéu fedora, pula na minha
frente com sua moto. “Madame, quer uma carona? Quer que eu a deixe em algum
lugar?” Sorrindo eu pergunto se a carona é de graça e monto atrás dele na moto,
apoiando meus braços nos seus ombros. Em minutos e depois das perguntas normais
sobre meu país e atividade, ele tinha me trazido para o centro da cidade e
generosamente pagou para um rickshaw me
levar ao hotel. Ainda que eu possa pagar pelo meu próprio transporte ele
insiste em recusar meu reembolso, dizendo que eu sou uma convidada do país
dele. Eu graciosamente agradeço e desejo boa sorte a ele. Quando chego no meu
quarto, minha energia restante já era e por volta das 8 da noite caio num sono
profundo.
As 3 da madrugada em ponto estou de pé, completamente
acordada. A cidade está adormecida. Eu sento no meu tapete de yoga aproveitando
a chance para uma sessão matinal. Exatamente às 5:30 da manhã o chefe de
cozinha bate na minha porta. Ah sim, eu esqueci de mencionar o chef: ontem de manhã, logo depois do
café da manhã, o chefe de cozinha gentilmente se ofereceu para me guiar por um tour nos jardins do hotel, ao fundo dos
quais encontram-se três lindos templos. Nas paredes externas ainda tem traços
da policromia remanescente dos antigos afrescos. Ele parece encantado com as coisas
que chamam minha atenção e mais ainda com minhas tentativas de falar híndi, mas
ele fica mesmo tocado com minha sinceridade para com a cultura indiana e
indiretamente para com ele. Os portais
das paredes internas centrais estão fechados mas sou convidada a assistir ao “arti” na madrugada seguinte, quando o
sacerdote honrará os ícones. Novamente as 5:30 da manhã em ponto o chefe de
cozinha bate na minha porta e pegamos nosso caminho. O sacerdote já começou a
cerimônia não-oficial. Dentro das paredes centrais tem um pequeno altar
vermelho, decorado com inúmeras estatuetas das deusas – as nove mães e no
centro uma escultura gigantesca de Hanuman, datada do século XVIII. Eu descubro
as antigas pinturas que decoram as paredes e o teto, dessa vez muito bem preservadas dentro das
paredes eternamente fechadas onde a entrada de luz é escassa. Fora dali o dia vai nascendo devagar.
São 8 da manhã e meu guia chega em sua moto. Nos preparamos
para partir para um dia de visitas aos menos acessíveis e mais retirados
templos. Quando subimos na moto o gerente do hotel oferece um capacete para o
guia. Enquanto ele se vira para mim, eu espero que o guia vá me oferecer o
capacete, mas estava errada. Ele apenas diz “está muito frio esta manhã” e
prossegue cobrindo sua própria cabeça. Eu suponho que aqui na Índia, o capacete
seja usado para manter a cabeça aquecida – o que até me parece adequado,
considerando a hora gelada da manhã e a viagem ao ar livre na moto. Felizmente o dia amanhece e o sol delicadamente
aquece nossos corpos.
Atravessamos da cidade para a aldeia; a luz do sol vai
deslizando pelo chão perseguindo as sombras e revelando o aroma especial do
interior. Eu procuro guardar na memória tudo que vejo: na calçada, crianças
uniformizadas indo para a escola de mãos dadas, um velho senhor enrolado em seu
xale branco como uma estátua, um outro varrendo a terra vermelha acumulada e
levantando ondas de poeira atrás de si, dois homens de braços dados, viajando
num tuk tuk e um deles fazendo
massagem na orelha do outro, uma mulher vestida num sari azul e enrolada num xale azul turquesa, um homem assoando o nariz
nas mãos, vegetais no chão cobertos de pó, um rebanho de pequenas vacas
atravessando a rua, crianças a correr descalças, as casas pintadas de azul
celeste e rosa bombom, o esterco de vaca secando ao sol, mulheres trabalhando
nos campos com seus saris coloridos
que parecem flores em meio ao campo verde, anciões da aldeia com seus olhos
brilhantes escondidos por trás de seus rostos magros e sua pele curtida de sol.
Lá está, distante, vejo Mitauli. Curiosamente, a maioria dos
templos yoginis, sempre reconhecíveis
pela estrutura circular e sem teto, estão construídos nas montanhas. De longe Mitauli forma um círculo majestoso. Uma
vez lá, percebo que algumas partes do templo foram reconstruídas e está muito
bem preservado e, a julgar pelos vestígios de rituais e de incenso fresco,
ainda recebe algumas discretas atividades. Os templos yoginis
estão relacionados a tradições secretas sobre as quais sabemos muito pouco. Percebo
que nem os guias e nem os locais que se juntaram a nós sabem de fato qual era o
propósito daquele templo. No máximo aprendi que esse templo é chamado “Templo
Yogini 64” apesar de abrigar 71 nichos.
Um dos guias me explica que yoginis
eram poderosas deusas e as pessoas vinha ao templo para receber a energia delas.
Passamos a tarde visitando três templos na região. É lindo; me
sinto em casa. Às vezes eu lamento não ter prestado mais atenção nas aulas de
arqueologia, mas na época eu não me interessava tanto pelas antiguidades e eu
ainda não tinha me dado conta de que a história e o significado esotérico são
dois lados da mesma moeda e o estudo de um leva, inevitavelmente, ao
conhecimento do outro. Entre as visitas aos templos paramos para beber um chai, conversar com os locais e até
aprender a dirigir a moto nas trilhas indianas. Meu guia é adorável e um bom
professor: ele conversa comigo quase todo o tempo em híndi, mas devagar e
pacientemente, o que me força a estar num estado de constante atenção ao mesmo
tempo que absorvo um bocado de informação em um só dia. Lá pelas 3 da tarde
decidimos voltar para casa. Está quente e como ele não quer o capacete nessa
hora, eu o coloco. Mudança de planos no último minuto: sou convidada para comer
com a família do irmão do meu guia e devolver a moto dele.
Quando chegamos, todos me olham com seus sorrisos tímidos e
cheios de curiosidade como se um evento especial estivesse prestes a acontecer.
As crianças se escondem e eu sou convidada a descansar em uma das camas
enquanto a comida está sendo preparada.
Falamos em híndi, bebemos chá e o tempo voa. Com exceção do meu guia
ninguém fala inglês, então ou ele traduz para mim ou simplesmente deixa que eu
me vire com a sua família. A comida é servida: chapatis com guee e sabji. Então chega a vez da dona da casa
comer também. Finalmente, quando todos comeram, a jovem me oferece óleo e um
pente – eu imagino que seja a hora de nos arrumarmos. Ela me empresta um batom
rosa-fúcsia que pode ficar lindo no tom da pele indiana mas que na minha pele
clara fica um pouco exagerado.
Enquanto isso, os meninos estão fazendo seus cadernos para a
escola. Por mais de uma hora eu os vejo costurar papelão cortado e folhas
soltas com fitas vermelhas, criando um caderno caseiro de 80 páginas. A capa de
papelão é devidamente protegida por um plástico da embalagem de fraldas de bebê
ou jornais indianos. Confesso que estou sem palavras; cá estamos nós, bem longe
da tradicional corrida anual às lojas de materiais escolares para comprar tudo
para o primeiro dia de aula, tão típica no ocidente.
São 4:30 da tarde – hora de pegar a estrada. Dessa vez o
irmão do meu guia vai dirigindo, o guia vai no banco de trás e eles me oferecem
uma carona. Chegamos à estação de trem onde, por um milagre, consigo um ticket
no último minuto. Amanhã eu parto para Varanasi para encontrar brevemente meu
professor de sânscrito e alguns amigo. Uma visita rápida, por uma semana, antes
de pegar meu caminho para Mysore.
Os cinco dias desde que cheguei parecem dois meses. Ontem
encontrei um casal de ucranianos que me perguntou se acho difícil viajar
sozinha. Eu respondi que viajar sozinha é igual viajar com amigos que você
ainda não conhece. Cada encontro revela algo mágico e não planejado,
especialmente se você está na Índia. Não tem mistério quando nos conhecemos.
Esse mês não há o que concluir. As palavras se encarregam disso,
e por trás delas se esconde um vasto mundo que podemos sentir simplesmente
fechando nossos olhos e nos deixando capturar por elas. Já está aqui, nesse
exato momento, para além das limitações de tempo e espaço. As histórias são
apenas um perfume que nos lembra da presença da flor, da beleza – arte e
espiritualidade. Em última instância nenhum dos dois existem; há apenas a vida,
momento a momento.
Estou pegando a estrada novamente e em algumas horas estarei
no trem para Varanasi, em seguida Mysore, Mumbai e depois quem sabe... nos
vemos em um mês.
Hari Om,
Mariette/Sara
Mariette
é graduada em Antropologia pela Universidade de Montreal. Ensina yoga alinhada
com a filosofia não dualista do Shivaismo Tântrico da Cachemira. Ela viaja
regularmente para Índia para continuar sua pesquisa sobre as tradições
esotéricas dos Tantras.